Revista da Faculdade de Letras, HISTÓRIA
Porto, III Série, vol. 8,
2007, pp. 113-155
Jorge Fernandes Alves
Professor catedrático da FLUP
Não se chegou a “exarar escrito ou escritura d’ essa sociedade”, mas a 10 de Abril de 1874, fez-se escritura de cessão e trespasse da quota de João Paes a Clemente Meneres, este já na qualidade de sócio e único gerente da sociedade que começa a girar sob o nome de C. Meneres e Cª . A firma Paes & Meneres era, deste modo dissolvida, mas o trespasse era avaliado em 28 contos de réis. Para esse efeito foram apresentadas oito letras de 3500$000 réis que seriam sacadas uma a uma e (sensivelmente) de seis em seis meses, a partir de 2 de Outubro de 1874, o que se prolongava até 2 de Janeiro de 1878. A verba do trespasse de apenas uma das quotas dá-nos uma ideia do volume de negócios realizado e do nível elevado de capitalização alcançado pela firma Paes & Meneres (6).
A C. Meneres & Cª. traduzia a natural continuidade destes negócios, tendo a sociedade anterior sido apenas dissolvida dada a retirada natural (por idade avançada) do sócio mais velho e capitalista. Integravam agora a firma Joaquim Silvano Filho e Álvaro Carneiro Geraldes, este com origem numa tradicional família de comerciantes do Porto com grande ligação ao Brasil.
De resto os negócios com a ex-colónia, que constituíam o grande suporte das exportações, estavam sempre sob mira: logo a 24 de Abril de 1874, a firma passa procuração ao sócio Álvaro C. Geraldes como seu representante no Rio de Janeiro, o qual para lá se deslocou, e, na sua falta, à casa Norberto Coelho & Cª, estabelecida no Rio (7).
A C. Meneres & Cª surgiu durante vários anos nos almanaques como “fábrica de rolhas para exportação, trabalho braçal e a vapor”, no cais da Alfândega 17, ou seja, na parte oriental do edifício do ex-convento de Monchique, então arrematada em hasta pública.
Importa aqui recordar que o convento de Monchique, fundado em 1575 foi, durante muito tempo uma importante instituição monástica franciscana com ocupação feminina: ao tempo de Rebelo da Costa (1788), tinha 70 freiras e mais de 100 serventes. Com a extinção das ordens religiosas, em 1834, foi incorporado nos bens da Coroa, sendo usado para diversos fins: arsenal militar, casa da moeda da Junta da Patuleia (onde se cunharam os patacos), depósito do trem militar e da pólvora, repartição de obras da alfândega e armazéns. Uma parte era administrada pelo ministério da guerra, outra pelo do reino e outra pelo da fazenda. A igreja foi desmantelada (um altar foi para a igreja de S. Mamede de Infesta, outro para a Igreja de S. Pedro de Miragaia e outro para o Hospital Militar D. Pedro V). Foi posto em praça várias vezes por inteiro, mas como ninguém o arrematava, em 1874, foi mais uma vez leiloado em 5 lotes. Foi nessa altura, que Clemente Meneres e Norberto Coelho arremataram dois lotes (nºs 1 e 5) para a sua casa comercial (mais tarde Clemente assumiu a quota de Norberto). Os outros foram arrematados por William Wawke (nº 2), que instalou lá uma fundição, e Henry Burnay (nºs 2 e 3). Na mitologia do convento, andará sempre associada a trama do romance Amor de Perdição, pois a personagem Mariana recolhe a este convento após o desenlace da sua história de amor.
Nos finais de Abril de 1874, a firma C. Meneres & Cª estava organizada. Um dos três sócios assegurava o expediente na sede, o outro deslocou-se ao Brasil, nomeadamente para controlar e ampliar as exportações. E Clemente Meneres procuraria potenciar os ganhos a montante, assegurando o abastecimento de matéria-prima (cortiça) a preços e quantidades mais convenientes. Ampliar e diversificar era a etapa seguinte, incluindo-se nesta diversificação a preparação de outras unidades fabris que permitissem abrir o leque das exportações, nomeadamente a instalação de uma moagem e da fábrica de conservas alimentícias.
sexta-feira, 5 de dezembro de 2008
domingo, 30 de novembro de 2008
De pedras fez terra - um caso de empreendedorismo e investimento (3)
Revista da Faculdade de Letras - HISTÓRIA
Porto, III Série, vol. 8,
2007, pp. 113-155
Jorge Fernandes Alves
Professor catedrático da FLUP
2.2 - O retorno e estabelecimento comercial no Porto
Em 1863, ou seja, apenas quatro anos depois da sua chegada ao Rio, aceita o desafio do sogro que retornava a Portugal e acompanha-o, crente na promessa de ajuda financeira para cá se estabelecer. Então, apesar de apenas estar ligeiramente “abrasileirado”, cumpre os rituais dos “brasileiros” de retorno do Porto oitocentista: vivendo com o sogro na rua da Torrinha, “d’alli ia todos os dias com elle até á Praça Nova, de chapéu do Chili, feito Brazileiro, mas sem vintém, entreter conversa com os que de lá vinham”.
Uma vez no Porto, o pai, preocupado, tratou de apressar-lhe o estabelecimento comercial, arranjando-lhe sócio. Na altura de solicitar os 3 contos de réis prometidos anteriormente pelo sogro, este, talvez por se sentir ultrapassado, negou-se a cumprir a promessa, dando-se a ruptura familiar e a mudança de domicílio. Vê-se obrigado a arranjar casa, apoiado apenas nas 100 libras (450$000 réis.) que, apesar de tudo, o sogro lhe facilitou, como adiantamento da herança que a mulher viria a receber, exigindo-lhe documento escrito para esse efeito. Clemente procura emprego, tentando capitalizar o saber-fazer adquirido como caixeiro no Rio de Janeiro, pondo para efeito um anúncio no jornal “como indivíduo sabedor de escripturação por partidas dobradas”. Conseguiu um lugar que o remunerava em cerca de 250$000 anualmente.
Pouco depois o pai anunciava-lhe que arranjara um sócio capitalista, João Joaquim de Paes, da Vila da Feira mas residente no Porto, que se propunha adiantar três contos para a constituição da sociedade, a qual funcionaria com “interesses divididos ao meio e uma retirada, por mim, para minhas despesas, de 30$000 réis”. Na realidade, João Paes adiantou um conto em dinheiro e uma letra de dois contos, aceite por outro comerciante, mas que foi sucessivamente reformada, pois Clemente evitou sacá-la para não criar constrangimentos financeiros, usando-a apenas como garantia. A entrada de capital de Clemente era insignificante, tendo correspondido apenas ao saldo do balancete (cerca de 116$000 réis, correspondente a alguns móveis), vindo depois a crescer com a capitalização proveniente da sua quota nos lucros. Note-se que muitas empresas da época funcionavam deste modo: havia um sócio capitalista que fornecia o capital para giro e um sócio trabalhador, este sem capital ou com uma parcela insignificante, que depois poderia ir dilatando à medida dos lucros repartidos. E é por esta altura, provavelmente mesmo por ocasião da constituição da firma, que Clemente passa a integrar no seu nome próprio o apelido Meneres, em busca de uma identidade própria: por soar melhor e com mais raridade ou para afastar a ligação que o “Guimarães” inevitavelmente arrastaria com o “brasileiro” da rua da Torrinha, seu tio e sogro, com quem se malquistara?
Nos almanaques da época vamos, assim, encontrar a firma Paes & Meneres, com porta aberta na rua da Ferraria, na qual aparecem simultaneamente como negociantes e como fabricantes de rolhas com depósitos de cortiça para exportação. No campo comercial, a firma anunciava vários tipos de drogas, desde enxofre, “cimento romano”, petróleo, aguardente, genebra, sumagre, baga de sabugueiro, pês louro e soda. Vendendo para a cidade e para província, estendeu os seus negócios ao Brasil e a alguns países europeus, para onde envia produtos tradicionais, sobretudo vinho, rolhas, palitos e ferragens para o Brasil, frutas para a Alemanha, França, Inglaterra. Desses tempos heróicos da iniciação, guardava boas recordações, face ao “extraordinario movimento a que dava causa esse pequeno capital. No fim do primeiro ano, o capital primitivo quase que dobrou”.
Movimento que Clemente procurou orientar sobretudo para a exportação, “por toda a parte onde o permitia a navegação, que nessa época era bem limitada”, mas principalmente para o Brasil. Foi por isso que, em 1872, convenceu o sócio a deixá-lo ir a este país, mostrando-lhe as vantagens da ligação directa numa área em que os comissionistas ganhavam a parte de leão. Com seis malas de amostras, percorreu o Brasil e as Repúblicas do rio da Prata em seis meses, utilizando-se do transporte em 14 vapores, para regressar “cheio de ideias novas, de novos negócios, preocupando-me a montagem de uma fábrica de conservas”, segundo as suas próprias palavras. No ano seguinte, de viagem à Exposição Universal de Viena, estabelece ligações em Hamburgo, onde consegue vender azeite para a Rússia. Depois de estar 14 dias em Viena para visitar a exposição, passou depois pela Holanda, Bélgica e Inglaterra, onde estabeleceu contactos vários, em especial com os corretores de vinho do Porto, em Londres, para cuja finalidade recebeu a ajuda da casa local Pinto Leite & Sobrinhos, de quem Clemente era agente no Porto. Revela, assim, uma vocação comercial de andarilho, indo ao encontro de novos clientes, não parecendo fadado para os esperar atrás do balcão.
Porto, III Série, vol. 8,
2007, pp. 113-155
Jorge Fernandes Alves
Professor catedrático da FLUP
2.2 - O retorno e estabelecimento comercial no Porto
Em 1863, ou seja, apenas quatro anos depois da sua chegada ao Rio, aceita o desafio do sogro que retornava a Portugal e acompanha-o, crente na promessa de ajuda financeira para cá se estabelecer. Então, apesar de apenas estar ligeiramente “abrasileirado”, cumpre os rituais dos “brasileiros” de retorno do Porto oitocentista: vivendo com o sogro na rua da Torrinha, “d’alli ia todos os dias com elle até á Praça Nova, de chapéu do Chili, feito Brazileiro, mas sem vintém, entreter conversa com os que de lá vinham”.
Uma vez no Porto, o pai, preocupado, tratou de apressar-lhe o estabelecimento comercial, arranjando-lhe sócio. Na altura de solicitar os 3 contos de réis prometidos anteriormente pelo sogro, este, talvez por se sentir ultrapassado, negou-se a cumprir a promessa, dando-se a ruptura familiar e a mudança de domicílio. Vê-se obrigado a arranjar casa, apoiado apenas nas 100 libras (450$000 réis.) que, apesar de tudo, o sogro lhe facilitou, como adiantamento da herança que a mulher viria a receber, exigindo-lhe documento escrito para esse efeito. Clemente procura emprego, tentando capitalizar o saber-fazer adquirido como caixeiro no Rio de Janeiro, pondo para efeito um anúncio no jornal “como indivíduo sabedor de escripturação por partidas dobradas”. Conseguiu um lugar que o remunerava em cerca de 250$000 anualmente.
Pouco depois o pai anunciava-lhe que arranjara um sócio capitalista, João Joaquim de Paes, da Vila da Feira mas residente no Porto, que se propunha adiantar três contos para a constituição da sociedade, a qual funcionaria com “interesses divididos ao meio e uma retirada, por mim, para minhas despesas, de 30$000 réis”. Na realidade, João Paes adiantou um conto em dinheiro e uma letra de dois contos, aceite por outro comerciante, mas que foi sucessivamente reformada, pois Clemente evitou sacá-la para não criar constrangimentos financeiros, usando-a apenas como garantia. A entrada de capital de Clemente era insignificante, tendo correspondido apenas ao saldo do balancete (cerca de 116$000 réis, correspondente a alguns móveis), vindo depois a crescer com a capitalização proveniente da sua quota nos lucros. Note-se que muitas empresas da época funcionavam deste modo: havia um sócio capitalista que fornecia o capital para giro e um sócio trabalhador, este sem capital ou com uma parcela insignificante, que depois poderia ir dilatando à medida dos lucros repartidos. E é por esta altura, provavelmente mesmo por ocasião da constituição da firma, que Clemente passa a integrar no seu nome próprio o apelido Meneres, em busca de uma identidade própria: por soar melhor e com mais raridade ou para afastar a ligação que o “Guimarães” inevitavelmente arrastaria com o “brasileiro” da rua da Torrinha, seu tio e sogro, com quem se malquistara?
Nos almanaques da época vamos, assim, encontrar a firma Paes & Meneres, com porta aberta na rua da Ferraria, na qual aparecem simultaneamente como negociantes e como fabricantes de rolhas com depósitos de cortiça para exportação. No campo comercial, a firma anunciava vários tipos de drogas, desde enxofre, “cimento romano”, petróleo, aguardente, genebra, sumagre, baga de sabugueiro, pês louro e soda. Vendendo para a cidade e para província, estendeu os seus negócios ao Brasil e a alguns países europeus, para onde envia produtos tradicionais, sobretudo vinho, rolhas, palitos e ferragens para o Brasil, frutas para a Alemanha, França, Inglaterra. Desses tempos heróicos da iniciação, guardava boas recordações, face ao “extraordinario movimento a que dava causa esse pequeno capital. No fim do primeiro ano, o capital primitivo quase que dobrou”.
Movimento que Clemente procurou orientar sobretudo para a exportação, “por toda a parte onde o permitia a navegação, que nessa época era bem limitada”, mas principalmente para o Brasil. Foi por isso que, em 1872, convenceu o sócio a deixá-lo ir a este país, mostrando-lhe as vantagens da ligação directa numa área em que os comissionistas ganhavam a parte de leão. Com seis malas de amostras, percorreu o Brasil e as Repúblicas do rio da Prata em seis meses, utilizando-se do transporte em 14 vapores, para regressar “cheio de ideias novas, de novos negócios, preocupando-me a montagem de uma fábrica de conservas”, segundo as suas próprias palavras. No ano seguinte, de viagem à Exposição Universal de Viena, estabelece ligações em Hamburgo, onde consegue vender azeite para a Rússia. Depois de estar 14 dias em Viena para visitar a exposição, passou depois pela Holanda, Bélgica e Inglaterra, onde estabeleceu contactos vários, em especial com os corretores de vinho do Porto, em Londres, para cuja finalidade recebeu a ajuda da casa local Pinto Leite & Sobrinhos, de quem Clemente era agente no Porto. Revela, assim, uma vocação comercial de andarilho, indo ao encontro de novos clientes, não parecendo fadado para os esperar atrás do balcão.
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