sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

De pedras fez terra - um caso de empreendedorismo e investimento (4)

Revista da Faculdade de Letras, HISTÓRIA
Porto, III Série, vol. 8,
2007, pp. 113-155


Jorge Fernandes Alves
Professor catedrático da FLUP

Não se chegou a “exarar escrito ou escritura d’ essa sociedade”, mas a 10 de Abril de 1874, fez-se escritura de cessão e trespasse da quota de João Paes a Clemente Meneres, este já na qualidade de sócio e único gerente da sociedade que começa a girar sob o nome de C. Meneres e Cª . A firma Paes & Meneres era, deste modo dissolvida, mas o trespasse era avaliado em 28 contos de réis. Para esse efeito foram apresentadas oito letras de 3500$000 réis que seriam sacadas uma a uma e (sensivelmente) de seis em seis meses, a partir de 2 de Outubro de 1874, o que se prolongava até 2 de Janeiro de 1878. A verba do trespasse de apenas uma das quotas dá-nos uma ideia do volume de negócios realizado e do nível elevado de capitalização alcançado pela firma Paes & Meneres (6).

A C. Meneres & Cª. traduzia a natural continuidade destes negócios, tendo a sociedade anterior sido apenas dissolvida dada a retirada natural (por idade avançada) do sócio mais velho e capitalista. Integravam agora a firma Joaquim Silvano Filho e Álvaro Carneiro Geraldes, este com origem numa tradicional família de comerciantes do Porto com grande ligação ao Brasil.

De resto os negócios com a ex-colónia, que constituíam o grande suporte das exportações, estavam sempre sob mira: logo a 24 de Abril de 1874, a firma passa procuração ao sócio Álvaro C. Geraldes como seu representante no Rio de Janeiro, o qual para lá se deslocou, e, na sua falta, à casa Norberto Coelho & Cª, estabelecida no Rio (7).

A C. Meneres & Cª surgiu durante vários anos nos almanaques como “fábrica de rolhas para exportação, trabalho braçal e a vapor”, no cais da Alfândega 17, ou seja, na parte oriental do edifício do ex-convento de Monchique, então arrematada em hasta pública.

Importa aqui recordar que o convento de Monchique, fundado em 1575 foi, durante muito tempo uma importante instituição monástica franciscana com ocupação feminina: ao tempo de Rebelo da Costa (1788), tinha 70 freiras e mais de 100 serventes. Com a extinção das ordens religiosas, em 1834, foi incorporado nos bens da Coroa, sendo usado para diversos fins: arsenal militar, casa da moeda da Junta da Patuleia (onde se cunharam os patacos), depósito do trem militar e da pólvora, repartição de obras da alfândega e armazéns. Uma parte era administrada pelo ministério da guerra, outra pelo do reino e outra pelo da fazenda. A igreja foi desmantelada (um altar foi para a igreja de S. Mamede de Infesta, outro para a Igreja de S. Pedro de Miragaia e outro para o Hospital Militar D. Pedro V). Foi posto em praça várias vezes por inteiro, mas como ninguém o arrematava, em 1874, foi mais uma vez leiloado em 5 lotes. Foi nessa altura, que Clemente Meneres e Norberto Coelho arremataram dois lotes (nºs 1 e 5) para a sua casa comercial (mais tarde Clemente assumiu a quota de Norberto). Os outros foram arrematados por William Wawke (nº 2), que instalou lá uma fundição, e Henry Burnay (nºs 2 e 3). Na mitologia do convento, andará sempre associada a trama do romance Amor de Perdição, pois a personagem Mariana recolhe a este convento após o desenlace da sua história de amor.

Nos finais de Abril de 1874, a firma C. Meneres & Cª estava organizada. Um dos três sócios assegurava o expediente na sede, o outro deslocou-se ao Brasil, nomeadamente para controlar e ampliar as exportações. E Clemente Meneres procuraria potenciar os ganhos a montante, assegurando o abastecimento de matéria-prima (cortiça) a preços e quantidades mais convenientes. Ampliar e diversificar era a etapa seguinte, incluindo-se nesta diversificação a preparação de outras unidades fabris que permitissem abrir o leque das exportações, nomeadamente a instalação de uma moagem e da fábrica de conservas alimentícias.

domingo, 30 de novembro de 2008

De pedras fez terra - um caso de empreendedorismo e investimento (3)

Revista da Faculdade de Letras - HISTÓRIA
Porto, III Série, vol. 8,
2007, pp. 113-155

Jorge Fernandes Alves
Professor catedrático da FLUP

2.2 - O retorno e estabelecimento comercial no Porto

Em 1863, ou seja, apenas quatro anos depois da sua chegada ao Rio, aceita o desafio do sogro que retornava a Portugal e acompanha-o, crente na promessa de ajuda financeira para cá se estabelecer. Então, apesar de apenas estar ligeiramente “abrasileirado”, cumpre os rituais dos “brasileiros” de retorno do Porto oitocentista: vivendo com o sogro na rua da Torrinha, “d’alli ia todos os dias com elle até á Praça Nova, de chapéu do Chili, feito Brazileiro, mas sem vintém, entreter conversa com os que de lá vinham”.

Uma vez no Porto, o pai, preocupado, tratou de apressar-lhe o estabelecimento comercial, arranjando-lhe sócio. Na altura de solicitar os 3 contos de réis prometidos anteriormente pelo sogro, este, talvez por se sentir ultrapassado, negou-se a cumprir a promessa, dando-se a ruptura familiar e a mudança de domicílio. Vê-se obrigado a arranjar casa, apoiado apenas nas 100 libras (450$000 réis.) que, apesar de tudo, o sogro lhe facilitou, como adiantamento da herança que a mulher viria a receber, exigindo-lhe documento escrito para esse efeito. Clemente procura emprego, tentando capitalizar o saber-fazer adquirido como caixeiro no Rio de Janeiro, pondo para efeito um anúncio no jornal “como indivíduo sabedor de escripturação por partidas dobradas”. Conseguiu um lugar que o remunerava em cerca de 250$000 anualmente.

Pouco depois o pai anunciava-lhe que arranjara um sócio capitalista, João Joaquim de Paes, da Vila da Feira mas residente no Porto, que se propunha adiantar três contos para a constituição da sociedade, a qual funcionaria com “interesses divididos ao meio e uma retirada, por mim, para minhas despesas, de 30$000 réis”. Na realidade, João Paes adiantou um conto em dinheiro e uma letra de dois contos, aceite por outro comerciante, mas que foi sucessivamente reformada, pois Clemente evitou sacá-la para não criar constrangimentos financeiros, usando-a apenas como garantia. A entrada de capital de Clemente era insignificante, tendo correspondido apenas ao saldo do balancete (cerca de 116$000 réis, correspondente a alguns móveis), vindo depois a crescer com a capitalização proveniente da sua quota nos lucros. Note-se que muitas empresas da época funcionavam deste modo: havia um sócio capitalista que fornecia o capital para giro e um sócio trabalhador, este sem capital ou com uma parcela insignificante, que depois poderia ir dilatando à medida dos lucros repartidos. E é por esta altura, provavelmente mesmo por ocasião da constituição da firma, que Clemente passa a integrar no seu nome próprio o apelido Meneres, em busca de uma identidade própria: por soar melhor e com mais raridade ou para afastar a ligação que o “Guimarães” inevitavelmente arrastaria com o “brasileiro” da rua da Torrinha, seu tio e sogro, com quem se malquistara?

Nos almanaques da época vamos, assim, encontrar a firma Paes & Meneres, com porta aberta na rua da Ferraria, na qual aparecem simultaneamente como negociantes e como fabricantes de rolhas com depósitos de cortiça para exportação. No campo comercial, a firma anunciava vários tipos de drogas, desde enxofre, “cimento romano”, petróleo, aguardente, genebra, sumagre, baga de sabugueiro, pês louro e soda. Vendendo para a cidade e para província, estendeu os seus negócios ao Brasil e a alguns países europeus, para onde envia produtos tradicionais, sobretudo vinho, rolhas, palitos e ferragens para o Brasil, frutas para a Alemanha, França, Inglaterra. Desses tempos heróicos da iniciação, guardava boas recordações, face ao “extraordinario movimento a que dava causa esse pequeno capital. No fim do primeiro ano, o capital primitivo quase que dobrou”.

Movimento que Clemente procurou orientar sobretudo para a exportação, “por toda a parte onde o permitia a navegação, que nessa época era bem limitada”, mas principalmente para o Brasil. Foi por isso que, em 1872, convenceu o sócio a deixá-lo ir a este país, mostrando-lhe as vantagens da ligação directa numa área em que os comissionistas ganhavam a parte de leão. Com seis malas de amostras, percorreu o Brasil e as Repúblicas do rio da Prata em seis meses, utilizando-se do transporte em 14 vapores, para regressar “cheio de ideias novas, de novos negócios, preocupando-me a montagem de uma fábrica de conservas”, segundo as suas próprias palavras. No ano seguinte, de viagem à Exposição Universal de Viena, estabelece ligações em Hamburgo, onde consegue vender azeite para a Rússia. Depois de estar 14 dias em Viena para visitar a exposição, passou depois pela Holanda, Bélgica e Inglaterra, onde estabeleceu contactos vários, em especial com os corretores de vinho do Porto, em Londres, para cuja finalidade recebeu a ajuda da casa local Pinto Leite & Sobrinhos, de quem Clemente era agente no Porto. Revela, assim, uma vocação comercial de andarilho, indo ao encontro de novos clientes, não parecendo fadado para os esperar atrás do balcão.