domingo, 30 de novembro de 2008

De pedras fez terra - um caso de empreendedorismo e investimento (3)

Revista da Faculdade de Letras - HISTÓRIA
Porto, III Série, vol. 8,
2007, pp. 113-155

Jorge Fernandes Alves
Professor catedrático da FLUP

2.2 - O retorno e estabelecimento comercial no Porto

Em 1863, ou seja, apenas quatro anos depois da sua chegada ao Rio, aceita o desafio do sogro que retornava a Portugal e acompanha-o, crente na promessa de ajuda financeira para cá se estabelecer. Então, apesar de apenas estar ligeiramente “abrasileirado”, cumpre os rituais dos “brasileiros” de retorno do Porto oitocentista: vivendo com o sogro na rua da Torrinha, “d’alli ia todos os dias com elle até á Praça Nova, de chapéu do Chili, feito Brazileiro, mas sem vintém, entreter conversa com os que de lá vinham”.

Uma vez no Porto, o pai, preocupado, tratou de apressar-lhe o estabelecimento comercial, arranjando-lhe sócio. Na altura de solicitar os 3 contos de réis prometidos anteriormente pelo sogro, este, talvez por se sentir ultrapassado, negou-se a cumprir a promessa, dando-se a ruptura familiar e a mudança de domicílio. Vê-se obrigado a arranjar casa, apoiado apenas nas 100 libras (450$000 réis.) que, apesar de tudo, o sogro lhe facilitou, como adiantamento da herança que a mulher viria a receber, exigindo-lhe documento escrito para esse efeito. Clemente procura emprego, tentando capitalizar o saber-fazer adquirido como caixeiro no Rio de Janeiro, pondo para efeito um anúncio no jornal “como indivíduo sabedor de escripturação por partidas dobradas”. Conseguiu um lugar que o remunerava em cerca de 250$000 anualmente.

Pouco depois o pai anunciava-lhe que arranjara um sócio capitalista, João Joaquim de Paes, da Vila da Feira mas residente no Porto, que se propunha adiantar três contos para a constituição da sociedade, a qual funcionaria com “interesses divididos ao meio e uma retirada, por mim, para minhas despesas, de 30$000 réis”. Na realidade, João Paes adiantou um conto em dinheiro e uma letra de dois contos, aceite por outro comerciante, mas que foi sucessivamente reformada, pois Clemente evitou sacá-la para não criar constrangimentos financeiros, usando-a apenas como garantia. A entrada de capital de Clemente era insignificante, tendo correspondido apenas ao saldo do balancete (cerca de 116$000 réis, correspondente a alguns móveis), vindo depois a crescer com a capitalização proveniente da sua quota nos lucros. Note-se que muitas empresas da época funcionavam deste modo: havia um sócio capitalista que fornecia o capital para giro e um sócio trabalhador, este sem capital ou com uma parcela insignificante, que depois poderia ir dilatando à medida dos lucros repartidos. E é por esta altura, provavelmente mesmo por ocasião da constituição da firma, que Clemente passa a integrar no seu nome próprio o apelido Meneres, em busca de uma identidade própria: por soar melhor e com mais raridade ou para afastar a ligação que o “Guimarães” inevitavelmente arrastaria com o “brasileiro” da rua da Torrinha, seu tio e sogro, com quem se malquistara?

Nos almanaques da época vamos, assim, encontrar a firma Paes & Meneres, com porta aberta na rua da Ferraria, na qual aparecem simultaneamente como negociantes e como fabricantes de rolhas com depósitos de cortiça para exportação. No campo comercial, a firma anunciava vários tipos de drogas, desde enxofre, “cimento romano”, petróleo, aguardente, genebra, sumagre, baga de sabugueiro, pês louro e soda. Vendendo para a cidade e para província, estendeu os seus negócios ao Brasil e a alguns países europeus, para onde envia produtos tradicionais, sobretudo vinho, rolhas, palitos e ferragens para o Brasil, frutas para a Alemanha, França, Inglaterra. Desses tempos heróicos da iniciação, guardava boas recordações, face ao “extraordinario movimento a que dava causa esse pequeno capital. No fim do primeiro ano, o capital primitivo quase que dobrou”.

Movimento que Clemente procurou orientar sobretudo para a exportação, “por toda a parte onde o permitia a navegação, que nessa época era bem limitada”, mas principalmente para o Brasil. Foi por isso que, em 1872, convenceu o sócio a deixá-lo ir a este país, mostrando-lhe as vantagens da ligação directa numa área em que os comissionistas ganhavam a parte de leão. Com seis malas de amostras, percorreu o Brasil e as Repúblicas do rio da Prata em seis meses, utilizando-se do transporte em 14 vapores, para regressar “cheio de ideias novas, de novos negócios, preocupando-me a montagem de uma fábrica de conservas”, segundo as suas próprias palavras. No ano seguinte, de viagem à Exposição Universal de Viena, estabelece ligações em Hamburgo, onde consegue vender azeite para a Rússia. Depois de estar 14 dias em Viena para visitar a exposição, passou depois pela Holanda, Bélgica e Inglaterra, onde estabeleceu contactos vários, em especial com os corretores de vinho do Porto, em Londres, para cuja finalidade recebeu a ajuda da casa local Pinto Leite & Sobrinhos, de quem Clemente era agente no Porto. Revela, assim, uma vocação comercial de andarilho, indo ao encontro de novos clientes, não parecendo fadado para os esperar atrás do balcão.

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